O que escapa

Recentemente, fui tomada por um susto. Deparei-me com a realidade crua de que, em poucos meses, havia me distanciado de diversas coisas que foram o meu acúmulo por anos. Vi escapulir de minhas mãos uma rotina, alguns costumes e anseios que segurei durante toda a infância e a adolescência.

            Para citar um exemplo concreto, relato aqui que, por mais de vinte anos, morei na mesma casa, cercada de parentes e amigos que via com uma frequência quase que exagerada. No entanto, em uma semana, eu fiz as minhas malas e me despedi. Despedi-me da casa que me formou e que por mim foi formada.

            Nesse processo de mudança, despedi-me também do meu cachorro, que estava comigo há uns 5 anos. Não pude leva-lo comigo na mudança em questão. Na verdade, não pude levar uma série de coisas. Ficaram por lá. Ficaram lá os comércios que frequentei, o bairro que acolheu meus pais retirantes, a igreja que me viu recém-nascida, os vizinhos que me bisbilhotaram nas fugas de madrugada… Ficaram e eu fui.

            Que coisa estranha! Tomei um susto com a forma brusca de a realidade mudar a sua face diante de meus olhos; tomei um susto ao me perceber, de um dia para o outro, outra pessoa, cercada de outros indivíduos e experimentando outras vivências. Tomei um susto por ver que as coisas me escaparam das mãos muito rapidamente e eu sequer pude reivindicar ficar com algumas delas. Pude apenas observá-las se esvaindo e se encaminhando para outro canto.

            E não estou aqui a fim de reclamar. Essas perdas não foram de tudo adversas. Estou aqui para falar de meu espanto. Afinal, embora seja um fato conhecido que a vida passa e leva consigo parte de nós, essa realidade não deixa de ser assombrosa. Não deixou de ser assombroso, para mim, acostumar-me a ver parentes e amigos uma vez ao mês – e olhe lá – quando estava acostumada a sempre os encontrar; quando, para mim, tal relação básica estava posta em minhas mãos.

            Notei que me escapou o muito tempo ocioso da infância. Escapou-me a despreocupação de parte da adolescência. Escaparam-me as utopias do início da juventude. Tudo isso me escapou como escapam os grãos de areia que se tenta segurar nas mãos enquanto se caminha de um ponto a outro.

            Enquanto me recuperava desse espanto, veio-me a pergunta: e, então, o que ficou? Ora, gostaria que a resposta fosse simples para eu lhe dizer aqui. Porém, penso que essa é a pergunta que agora me acompanhará por alguns dias – talvez, até o último deles. Durante o devaneio desse momento, tento apenas desfrutar dos grãozinhos que estão em minhas mãos, observando-os antes que me escapem também.

Foto: Gilton Lopes Nascimento.

Sobre o Autor

Nívea Lopes
Nívea Lopes

Nívea Lopes, professora de Língua Portuguesa e artista.

2 Comentários

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  1. Que texto profundo Nívea.. Também tive essas sensações ao me casar e mudar de cidade. As coisas a que tanto eram de costumes e rotineira se passaram a ser apenas lembranças. Amei o texto..

  2. Muito bom. Realmente as mudanças acontecem inevitavelmente, mas a questão é: como lidar com elas?

    Seu texto trouxe pra mim a reflexão de que as coisas não mudam só por fora, mas também dentro da gente e envolve quem somos. Talvez por isso seja desconfortável.