Livro marcado

Dia desses eu peguei um livro para ler. Era um livro que estava em minha estante há tempos. Lembro-me de tê-lo comprado numa bienal por ser um livro que há muito tempo queria ler, mas que, depois de comprado, demorei para abrir. Porém, passado alguns anos, decidi abrir o livro e me deparei com algo que até então não havia notado: embora o aspecto do livro fosse novo por fora, por dentro ele carregava marcações. O livro já havia sido folheado e marcado por alguém.

Não me importei com o fato de o livro ser usado, mas, ao decorrer da leitura, não pude deixar de notar as marcações desse outro leitor ou leitora. Involuntariamente, parava nas linhas marcadas por esse outrem e tentava adivinhar o porquê daquela anotação. Às vezes, deparava-me com uma anotação de marca-texto, outras vezes com a de um lápis que circulava um parágrafo ou até com a dobradiça de uma página. Dessa forma, a minha leitura se tornou uma investigação da passagem de outro olhar pelo livro que agora era meu.

Posso dizer, inclusive, que me senti como se estivesse acompanhada. Lia uma página e era levada à imaginação de que outrora outra pessoa folheava esse mesmo livro. Em certos momentos, ria do fato de um trecho que considerara pouco interessante ter recebido marcações desse outro leitor ou leitora. É importante fazer um adendo de que esse livro de que trato é um livro bastante conhecido em território nacional, então, certamente eu não poderia inferir que se trataria de uma leitura particular. Era e ainda é uma leitura coletiva.

Nesse processo de ler e perceber outra leitura sobre a minha, pensei nessa coisa toda da literatura. Embora essa leitura parecesse, a princípio, ser uma atividade solitária, na realidade, tratava-se de uma atividade repleta de companhias, ora das personagens dentro do enredo, ora do escritor que escreveu o livro em outro tempo e espaço, ora de todos os outros olhares que já haviam perpassado a obra.

Para ilustrar essa experiência, trago aqui um trecho que recebeu a anotação dessa outra pessoa que cito aqui e que sequer me conhece. Ela achou por bem circular essa parte da narrativa: “Teve vontade de entrar, de se misturar com os grevistas, de gritar e lutar ao lado deles”. Confesso que também achei um trecho interessante, mas não quis anotar nada em cima da anotação já feita por esse colega de leitura. Achei esse trecho interessante, sobretudo, por ter me sentido misturada com essa outra pessoa, por concluir que ler é nunca estar sozinha, por concluir que ler é sempre estar lutando por algo — talvez, pelo próprio direito à literatura. E estávamos. Ela de lá e eu de cá.

Sobre o Autor

Nívea Lopes
Nívea Lopes

Nívea Lopes, professora de Língua Portuguesa e artista.

0 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *