Errante, Ana?
(Ana caminha calmamente pela sua cozinha enquanto se recorda de cenas de sua infância e adolescência. Ao passo que as memórias vêm à sua mente, ela conversa consigo mesma. A personagem tenta se entender. Ela diz a frase a seguir três vezes como se estivesse buscando o seu significado. Diz para si mesma)
ANA: “As raposas têm as suas tocas e as aves dos céus têm os seus ninhos…”
Quando eu era uma adolescente, li essa frase no portão de uma casa. O texto tinha uma continuação, mas foi apenas esse início que o meu cérebro registrou. E registrou por uma razão: foi naquele dia que a vida me provocou com algo que me acompanha ainda hoje. Naquele dia, veio-me a pergunta: ué, e para onde vão os erradios? Os que vagueiam por aí têm um lugar para voltar? As raposas têm; as aves dos céus têm. Mas e os chamados “vagabundos”?
Essas perguntas me atormentaram e, volta e meia, atormentam-me de novo, porque não acho que sou como as raposas e as aves dos céus. Mesmo depois de crescida, já errei várias vezes o caminho de volta para casa — talvez por já ter morado em diversas… E não só isso: eu erro o caminho de tudo. É como se o meu corpo, naturalmente, se inclinasse para rotas estranhas, e eu vou — embora me arrependa em seguida.
(Faz uma pausa, respira profundamente e retoma o monólogo)
Minha mãe insistia em me corrigir desse alheamento. Ela dizia que eu gostava de fazer corpo-mole e que essa era uma tendência ruim minha de querer o caminho mais fácil. Ela dizia que esses meus erros eram, na verdade, uma tentativa de buscar atalhos. (Ri para si mesma) Não digo que ela estava completamente errada. Mas discordo da parte do “corpo-mole”. Pelo contrário! Cabe aqui até uma confissão: sempre achei os meus caminhos alternativos arriscados e incômodos. Pensa só: quando se tem um caminho certo a seguir, não há muito com o que se preocupar. Agora, quando há uma entrega para algo obscuro, é como se você estivesse em uma corda bamba, sem saber exatamente o que esperar caso perca o seu equilíbrio.
Eu errava e erro o caminho até hoje por me entregar a ele! E quando isso dá errado, tenho uma virtude: não vejo problemas em me arrepender e retomar! Quem não quiser me perdoar — como fez a minha mãe — que não me perdoe. Eu definitivamente não sou como as raposas e nem como as aves dos céus.
Foto: Gilton Lopes Nascimento
Monólogo: Nívea Lopes
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