Gênese

Gênese
Texto escrito para a construção da personagem da peça “Canoeiros de Papel”

No dia 25 de dezembro de 1993, em uma família já formada por pai, mãe e uma jovem de 20 anos, nasceu Ana. Em razão da data, seu nascimento tinha tudo para ser visto como um belo presente. Porém, o acontecimento gerou mais estranhamento do que celebração. Os pais já velhos e uma jovem quase formada não previam a presença de um novo bebê. Não previam uma novidade depois de anos de uma rotina já bem estabelecida.

            Nesse contexto, essa família estava — ainda que inconscientemente — pouco disposta a se reajustar em prol da nova criança. Assim, no período de sua infância, Ana logo percebeu a necessidade de se regular e seguir a linha já traçada pela sua família. Foi se equilibrando e se afinando como conseguia dentro do modelo familiar em que estava inserida.

            O pai, que era pescador, e a mãe, que era tecelã, não lhe negavam carinho e afeto. A irmã, embora tenha demorado para aceitar a ideia de não ser mais filha única, também não a desprezava. Poderia se dizer até que aprendera a amar a menina. Dessa forma, Ana se entregava a esse lar e aos desafios que ele lhe propunha. No fim das contas, Ana nutria uma grande ternura por aquele espaço. E foi assim durante a sua adolescência.

            No entanto, pelos motivos aparentes, Ana não se sentia completamente confortável e pertencente àquele lugar. Isso se agravou na juventude. As suas tentativas de se acomodar aos moldes da família já pronta a fez desenvolver um apavoramento, um medo, um desespero em sair do padrão ali posto — um padrão quase invisível, mas que a atravessava violentamente.

            Obviamente, Ana não expunha essas suas questões. Àquela altura do campeonato, quem ali se interessaria por isso? Quem despenderia tempo aos conflitos internos de alguém que chegou tão repentinamente, de quem chegou atrasado? Ana, então, questionava-se e ressentia-se interiormente. Porém, assim como uma bexiga cheia de ar uma hora estoura, a moça deixava, por vezes, escapar seus sustos. Não raro, via-se em Ana uma série de sobressaltos, movimentos bruscos e interrompidos. Medos.

            Agora, aos 30 anos, Ana ainda carrega consigo o desafio de se equilibrar e de seguir uma linha invisível a alguns, mas que ela sempre viu à sua frente. Com os seus tombos incalculáveis, carrega consigo também uma curiosa resiliência. Na mesma medida em que cai dessa linha e deixa se mostrar uma moça ansiosa e desesperada, ergue-se e torna a caminhar. Segue assim há três décadas, mas agora sem a mãe e o pai — apenas a irmã, a lembrança de sua inadequação.

Foto: Gilton Lopes Nascimento
Texto: Nívea Lopes

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Sobre o Autor

Nívea Lopes
Nívea Lopes

Nívea Lopes, professora de Língua Portuguesa e artista.

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